Confira a entrevista do diretor de Relações Internacionais da UNE, Mateus Fiorentini, analisa a expansão das manifestações estudantis pela América Latina
Nos últimos anos, países latino-americanos e caribenhos têm visto crescer mobilizações estudantis por educação de qualidade e políticas públicas. Alguns exemplos são as manifestações chilenas que levam milhares de estudantes e trabalhadores/as para as ruas para exigir uma educação pública gratuita e de qualidade; as dos/as estudantes colombianos/as, demandando uma Lei Alternativa de Educação Superior; e as mobilizações do movimento #YoSoy132 que denunciaram a manipulação midiática durante a cobertura do processo eleitoral mexicano.
Em entrevista à ADITAL, o líder estudantil Mateus Fiorentini, integrante da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da Organização Continental Latino-Americana e Caribenha de Estudantes (Oclae), analisa a expansão das manifestações estudantis pela região e destaca a participação dos movimentos em mobilizações de outros setores, como na luta das mulheres, dos trabalhadores e dos povos originários.
Para ele, as mobilizações de jovens e de estudantes apontam que a juventude tem sido protagonista em várias ocasiões e evidenciam que os/as jovens não são o futuro do país, e sim o presente.
A ascensão das mobilizações estudantis de todo o continente, em especial o chileno, são um reflexo do novo momento político que vive a região. A eleição de governos mais vinculados à defesa da soberania nacional e dos investimentos em áreas sociais fez com que a América Latina tomasse outro rumo. Neste sentido, a luta daqueles que historicamente reivindicam essas demandas tem ganhado força em todo continente latino-americano. Acredito que o movimento estudantil chileno e não só ele, mas o colombiano e o de distintos países da América Latina, provam que as formas tradicionais de luta seguem atuais.
Ou seja, mesmo com uma grande campanha buscando deslegitimar as organizações e as formas de luta tradicionais os estudantes chilenos dão o exemplo de que a internet é uma ferramenta importante e central de luta. Porém, as principais formas de luta seguem sendo a passeata, o protesto, etc. O que os estudantes chilenos nos mostram é que a internet é uma ferramenta a mais a complementar à manifestação de rua.
Acredito, ainda, que as mobilizações estudantis do Chile contribuíram para desnudar um modelo educacional que servia de referência para muitos países como algo avançado. Além de representar uma espécie de implementação exitosa do neoliberalismo na educação. Até as mobilizações dos estudantes chilenos, liderados pela CONFECH [Confederação de Estudantes do Chile], o imaginário que existia era de que o Chile era uma referência em termos educacionais. Hoje é o modelo que todos buscam distância.
Existem as duas coisas. Cada país tem sua realidade e as lutas e demandas são diferentes. O que unifica elas é a conjuntura política dos países. Por isso a luta contra a repressão, o autoritarismo e em defesa da democracia são elementos comuns.
Acredito que essa é uma característica do movimento estudantil de caráter histórico. Há pouco tempo conversava com um líder estudantil argentino que me falava sobre o papel do hino nacional nas manifestações estudantis. Então mencionei que no Brasil sempre cantamos o hino nacional após uma passeata da UNE [União Nacional dos Estudantes] e ele me responde: – Nós também! Acho que o movimento estudantil é caracterizado em toda a sua história por não ser corporativista e, portanto, não preocupar-se somente com as questões específicas aos estudantes ou mesmo à educação. Os estudantes sempre estiveram vinculados às grandes causas nacionais e latino-americanas.
No manifesto de Córdoba de 1918, os estudantes já defendiam uma Universidade a serviço da integração latino-americana. No Uruguai no período da Ditadura Militar [período que foi de 1973 a 1985] se cunhou uma consigna que diz: “Obrero y estudiante, unidos y adelante” (Operário e estudante, unidos e adiante). No Brasil, a UNE, a UBES [União Brasileira dos Estudantes Secundaristas] e a ANPG [Associação Nacional de Pós-Graduandos] sempre tiveram um vínculo muito estreito com os movimentos sociais.
Hoje o movimento estudantil latino-americano busca cada vez mais pautar as questões da educação, mas também somar-se nas lutas de libertação nacional, na luta das mulheres, trabalhadores, povos originários, etc. Temos claro que a construção de uma sociedade superior, que não seja baseada na exploração do homem pelo homem e na desigualdade passa pela transformação profunda da ordem política e econômica da sociedade.
Acho importante essa visibilidade. Acredito que os estudantes e a juventude estão conquistando o seu espaço. Durante muito tempo se reproduziu a ideia de que a juventude é o futuro do país. Hoje as lutas estudantis e juvenis provam que somos o presente também.
Assim, acho que a juventude tem assumido cada vez mais protagonismo na sociedade e em muitos países têm avançado também em políticas para este setor. Vários países, hoje, criam espaços de governo específicos para tratar o tema juventude e espaços de interlocução com as organizações juvenis.
Acredito que esses governos andam na contramão do momento que vivemos na América Latina e no Caribe. Enquanto na maioria do continente vivemos um período de avanço democrático, de defesa da convivência respeitosa das diferenças, do diálogo dos governos com as organizações sociais, esses governos revivem os fantasmas do período de convivência antidemocrática no continente. Ainda são focos de resistência neoliberal na região. O México é um quintal dos EUA e seu governo vive de joelhos para o que Washington ordena. Usa uma suposta guerra interna para gerar terror na população e uma direita subalterna segue governando o país sob um processo eleitoral cheio de questionamentos.
No Chile se ressuscitou a política pinochetista que está presente nos setores ligados à segurança. Isso combinado com uma direita intransigente que não abre mão de seus princípios para implementar seu projeto, é a fome com a vontade de comer. Participar de uma mobilização no Chile é como viajar numa máquina do tempo ou entrar em um filme sobre a ditadura. Tudo o que vemos nos documentários sobre a ditadura acontece lá. É inadmissível que em meio a um ambiente de avanço democrático se presencie cenários como este. Ainda precisamos dar mais difusão ao que vem ocorrendo na Colômbia. Ali talvez a situação seja ainda pior porque não tem a mesma visibilidade internacional que as mobilizações no Chile.
Na Colômbia se vive em um estado de sítio permanente, com um regime político de uma ditadura clássica. A polícia reprime até as festas dos estudantes. Os líderes estudantis precisam sair às ruas disfarçados e sair à noite em grupos por conta da repressão. Ali o forte aparato da inteligência norte-americana e as 9 bases militares dos EUA obrigam os líderes sociais a se esconderem. Até os perfis em redes sociais na internet são invadidos pelos órgãos de inteligência.
É preciso dar visibilidade à realidade colombiana, onde líderes sociais vêm sendo perseguidos, presos e assassinados neste país. Ainda é preciso dar visibilidade à realidade de Porto Rico, que em pleno século XXI segue sendo uma colônia norte-americana e sequer elege seu presidente.
O movimento estudantil cubano é representado na Federação Estudantil Universitária (FEU), na Federação de Estudantes de Ensino Médio (FEEM) e nos Pioneiros (organização estudantil dos estudantes de nível primário). Em primeiro lugar é preciso entender o papel do movimento estudantil cubano e considerar a realidade política e econômica cubana para compreender o movimento estudantil de lá.
As entidades estudantis foram protagonistas na luta contra as duas ditaduras que existiram em Cuba nos anos 30 e 50. Em especial a ditadura de Fulgêncio Batista, onde essas entidades foram postas na clandestinidade. Para ter uma ideia, os Pioneiros de Cuba foram criados nos anos 30 e 40 para lutar contra a ditadura do período. E a repressão não perdoava nem essas crianças do ensino fundamental que não tinham mais de 14 anos. No período de Batista, a FEU chegou a organizar o Diretório Revolucionário, que fazia as ações urbanas em conjunto com o movimento 26 de julho de Fidel Castro, ex-dirigente da FEU.
Assim é possível entender que o movimento estudantil cubano tem um enorme protagonismo no país. Esse entendimento chega mais longe ao compreender que em Cuba, após a revolução de 59, passa a construir um outro tipo de Estado. Um Estado participativo, onde o povo e as organizações sociais não são somente receptores das políticas do Governo. Assim as entidades e o povo passam a ser protagonistas da construção do país.
Diante disso o movimento estudantil cubano passa a ser protagonista na luta pela construção desse novo Estado e a enfrentar todos os tipos de intervenção imperialista na ilha. Hoje o movimento estudantil cubano protagoniza a luta pelo fortalecimento do socialismo e pelo êxito das reformas que vêm ocorrendo. No âmbito educacional tem se discutido muito o fortalecimento do ensino técnico e o incremento da produção industrial do país com a garantia dos direitos históricos conquistados pela Revolução cubana como a saúde gratuita e de qualidade e a educação como direito de todos e dever do Estado.
Vale somente ressaltar que nesta última semana ocorreram eleições ordinárias em Cuba que se realizam a cada 2 anos e meio para eleições locais e a cada 5 anos para eleições nacionais. O movimento estudantil tem um papel importante aí também, uma vez que os responsáveis pelas urnas são os Pioneiros de Cuba, e com o voto facultativo mais de 90% da população votou.
Bom, o próprio congresso da OCLAE, o CLAE [Congresso Latino-Americano e Caribenho de Estudantes], que tu mencionaste anteriormente foi um exemplo. São poucas as organizações que conseguem mobilizar 5 mil estudantes de 20 países da América Latina para integrar e compartilhar lutas, elaborações e experiências. E, mesmo diante de toda essa diversidade, construir unidade. No âmbito das mobilizações estudantis, promovemos no final do ano passado um dia continental de mobilizações onde Chile, Equador, Peru, Colômbia, Argentina, Uruguai, Brasil e Cuba realizaram no dia 25 de novembro mobilizações em solidariedade com os estudantes chilenos e colombianos. Ainda no mês de março deste ano realizamos uma jornada de lutas contra a mercantilização da educação, contra a criminalização dos movimentos sociais e pela integração justa e soberana da América Latina.
Essa jornada foi lançada no dia 31 de agosto em Brasília durante a jornada de lutas da UNE, UBES e ANPG que mobilizou 20 mil pessoas e contou com a presença da liderança chilena Camila Vallejo e líderes estudantis da Argentina. No âmbito educacional participamos dos distintos espaços de discussão sobre o papel da educação na região.
Fomos protagonistas da construção da Conferencia Regional de Educação Superior da UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] em 2008 e estamos fortalecendo esse debate nos espaços multilaterais do continente. Estamos construindo, em conjunto com as distintas redes universitárias, organizações sindicais, governos e órgãos multilaterais uma proposta para um plano de integração educacional do continente. Queremos que a Universidade esteja no centro da integração latino-americana e que contribua na formação de uma identidade latino-americana e na soberania científica e tecnológica da região.
A perspectiva é avançar na integração das pautas estudantis ao longo do continente e contribuir para que possamos dar passos largos na construção da Pátria Grande Latino-Americana que defendia Simon Bolívar.
É também contribuir com nossas lutas contra as tentativas colonialistas que ainda existem em nosso continente por parte do imperialismo norte-americano ou da União Europeia. Será seguir na luta para que o povo não pague pela crise que o modelo neoliberal vive no momento. Será seguir lutando em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade e contra a mercantilização da educação. Acredito que estamos diante de uma oportunidade única para por a Universidade latino-americana no centro do processo integracional que vivemos. Em meio aos importantes avanços integracionistas com o MERCOSUL [Mercado Comum do Sul], UNASUL [União das Nações Sul-Americana], ALBA [Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América] e CELAC [Centro de Estudos para América Latina e Caribe], a Universidade possui um papel central.
Queremos um plano de integração educacional do continente que garanta o caráter público da educação, que se garanta liberdade de cátedra, que garanta o tripé da educação que é Ensino, Pesquisa e Extensão, que possamos impulsar e compartilhar a produção científica e tecnológica produzida nos bancos e laboratórios acadêmicos. E que essa produção seja livre a serviço da sociedade e não propriedade de poucas corporações econômicas.
Queremos uma Universidade que compartilhe pesquisa e extensão e que coloque o estudante no centro desse processo. Por isso o intercâmbio estudantil precisa estar vinculado a esse processo. O que vemos muitas vezes é a mobilidade acadêmica consistir em apenas trasladar estudantes de um país a outro para cursar uma cadeira. Precisamos inserir o estudante no centro do processo integracionista e vinculá-lo com a produção de pesquisa e extensão universitária. Queremos uma educação em que um jovem brasileiro possa começar um curso na Argentina, estudar em Cuba e formar-se no Brasil, sem reproduzir aqui as políticas nefastas do neoliberalismo europeu com o Plano Bologna.
Queremos uma Universidade a serviço da integração da América Latina, pública, gratuita e de qualidade. E queremos uma América Latina a serviço dos seus povos. A perspectiva do movimento estudantil para os próximos anos é seguir balançando as estruturas dessa velha e arcaica sociedade para construirmos uma América Latina unida e sem desigualdades nem exploração.
Adital