25 de nov. de 2012
Cota não é concessão, mas resultado de luta, diz professor da USP
Para o professor Marcus Orione, adoção de cotas sociais e raciais em institutos e universidades federais pode fazer com que o Brasil periférico passe a ser o centro das preocupações nas instituições de ensino superior.
Professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), Marcus Orione é um dos maiores defensores da implementação de cotas raciais e sociais nas instituições públicas como forma de corrigir distorções históricas entre brasileiros.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ele rebate as críticas comumente feitas por aqueles que são contrários à medida, discutindo temas como a ameaça à meritocracia, o possível surgimento de uma nova segregação racial, a impossibilidade de checar a veracidade das informações oferecidas por cotistas e as consequências sociais das cotas. Confira.
Brasil de Fato: Professor, como o senhor avalia as cotas sociais e raciais do ponto de vista da ampliação de direitos de negros, indígenas e pobres no Brasil?
Marcus Orione: A previsão de cotas, para além da aquisição de um direito em si, é um fato decorrente das lutas dos movimentos sociais, que impulsionam o país para uma maior igualdade. Não se trata de uma concessão de quem tem o poder, mas de uma luta da sociedade que consegue, por sua pressão, transformá-la em realidade. A lei que contenha previsão de cotas, além de outras ações afirmativas para estas populações fragilizadas, é aspecto formal de um dado mais relevante: a luta de um país pelo fim das diferenças raciais, étnicas e sociais. Na realidade, não se trata de conquista que cria novos privilégios para estes setores, mas a que desfaz os privilégios, hoje existentes, de uma elite branca brasileira que se esforça, de forma irracional, para manter uma lógica que somente a prestigia.
Barsil e Fato: A política afirmativa de cotas recentemente aprovada democratiza a Universidade e instituições federais públicas?
Marcus Orione: Considerada a igualdade, as cotas sequer fazem restabelecer uma democracia que em algum lugar ou momento histórico ficou perdida no país. A história do Brasil, para se realizar na sua concretude, somente se consolidará quando os negros, indígenas e toda sorte de pobres passarem de personagens secundários e massacrados para os seus verdadeiros protagonistas. É inadmissível, por exemplo, se ingressar numa Faculdade de Direito, como a do Largo de São Francisco, e quase não se ver negros entre os estudantes e os professores. Os negros presentes naquele espaço são, em geral, funcionários. Isto revela a própria inversão do espaço público, que não traduz, geograficamente, a realidade do país, mas que diz muito sobre a divisão do poder do Brasil.
Brasil de Fato: Professor, há quem fale que as cotas são uma “ameaça” à meritocracia. Há dados e informações que comprovem a diferença entre o desempenho de alunos cotistas em relação aos alunos não-cotistas?
Marcus Orione: O conceito de mérito é bastante relativo e depende claramente dos valores que determinada sociedade tem como mais importantes. Em tese, defende-se que aquele que mais merece possa acessar a uma vaga nas melhores universidades. Mas o mérito não pode ser vislumbrado apenas da ótica individual do candidato. É preciso superar essa lógica capitalista. O mérito deve visto a partir da potencialidade do candidato para melhor produzir conhecimentos, já que a universidade é, em essência, um polo de geração destes conhecimentos. Portanto, deve-se merecer não porque se é efetivo na perspectiva concorrencial de um vestibular hoje caduco. Deve-se merecer porque é potencial gerador de saberes. Certamente que, quanto mais plural for a universidade, maior a sua potencialidade de gerar tal saber. No entanto, o saber gerado não pode ser apenas o que mantém vantagens para grupos específicos. Isso será sempre reproduzido se a clientela das universidades, em especial nos cursos de maior procura, se mantiver sendo a elite branca, proveniente em especial da classe média. O conhecimento precisa de outras fontes, sob pena de gerar a manutenção do estado das coisas e não impulsionar o crescimento do país, em todos os aspectos. Conhecimento, enquanto poder, não deve ficar concentrado. Não falamos o mesmo quando se trata do poder político e da necessidade de regras que potencializem a rotatividade?
Por outro lado, ainda que sob a perspectiva clássica e mais individualista do mérito, percebe-se atualmente que os alunos negros e outros de segmentos mais pobres da comunidade não apresentam rendimentos menos significativos do que o dos candidatos brancos durante o curso superior, ainda que ingressando por programas de cotas. Estes números estão presentes na experiência norte-americana, mas se encontram também na realidade brasileira, como na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por exemplo. Em ambos os casos fica demonstrado que, em especial com a existência de programas de apoios com bolsas de estudo e aprendizado específico em áreas como português ou matemática, as diferenças de desempenho são desprezíveis. Esta constatação também aparece no caso da USP, em relação aos admitidos pelos programas de inclusão que são direcionados para os egressos das escolas públicas. Em especial na experiência da UERJ, os cotistas também são os que apresentam menor índice de evasão escolar, o que é extremamente importante pelo custo que cada vaga ociosa representa para os cofres públicos.
Brasil de Fato: Os críticos também apontam a lei de cotas como falha, dizendo que não será possível checar a veracidade das informações sobre a renda dos estudantes e daqueles autodeclarados negros e indígenas. Isso pode acontecer?
Marcus Orione: A UERJ desde o seu primeiro vestibular em 2003, em que destinou vagas para as cotas, sempre utilizou o sistema de autodeclaração. A autodeclaração é a forma mais correta de se tratar a questão, sendo inclusive aquela recomendada por documentos internacionais que tratam da questão racial. A razão é simples: não é dado a ninguém dizer a respeito de uma condição inerente a outro ser humano. Ora, não é razoável que se atribua a terceiros a dicção da identidade alheia. Caso contrário, seria um poder conferido a um terceiro sobre traço característico fundamental de certo grupo, percebido na perspectiva de sua identidade. É poder demais de um homem sobre o outro. No caso da UERJ, por exemplo, em quase dez anos, a questão não suscitou grandes demandas sobre a veracidade das afirmações, sendo que o controle, certamente, existe internamente no dia-a-dia da universidade, onde convivem cotistas e não-cotistas. Registre-se que certo escritório, ligado a movimentos sociais, colocou à disposição peça judicial no seu site, para que qualquer um que se sentisse atingido pela declaração inverídica pudesse ingressar em juízo contra aquele que se utilizou deste artifício. No entanto, a despeito disto tudo, não há uma quantidade significativa de fatos que coloquem em risco o sistema de cotas daquela universidade. Acho, inclusive, que a melhor maneira de controle, se é que ela realmente é necessária, seria a realizada pelos movimentos sociais ligados à questão racial. Se estes entenderem que esteja havendo fraude, eles devem agir em defesa da causa racial. No entanto, acredito que não se deva começar a questão pela presunção de má-fé. A boa-fé se presume. Se alguém agir com má-fé, certamente, demonstrado o fato, há mecanismo jurídicos à disposição de qualquer um, que se sinta prejudicado.
Brasil de Fato: A mudança do perfil social das Universidades deve ter consequências em relação ao tipo de conhecimento científico produzido?
Marcus Orione: Inicialmente, e já está comprovado, o que reforça a ideia de que o mérito não deve ser vislumbrado sob a perspectiva individual, é que os cotistas, após formados, realizam de forma voluntária maior prestação de serviços às comunidades pobres. Somente por este argumento, não se justifica que sejam mais merecedores do que os demais – considerado o mérito a partir do interesse da sociedade? Assim, nos Estados Unidos, por exemplo, demonstrou-se que médicos provenientes de sistema de cotas atendem duas vezes mais, como voluntários, as comunidades pobres. Esta maior disposição também foi demonstrada em relação aos cotistas da UERJ. A questão me parece clara e nos fornece elementos para a melhor resposta da pergunta: quem é forjado na solidariedade irá, com mais facilidade, gestar soluções solidárias. Este dado é extremamente importante para o incremento das pesquisas e do ensino nas universidades. Hoje, extremamente centrados em óticas desocupadas da realidade social, certamente que, com a modificação do universo de seus discentes, o centro das preocupações seria outro, bem mais próximo de sua própria realidade. O Brasil periférico seria o centro das preocupações, o verdadeiro Brasil passaria a ser analisado nas universidades. O país tem problemas sérios que poderiam ser melhor resolvidos se os cérebros existentes na universidade estivessem efetivamente a seu serviço. No entanto, hoje preocupado essencialmente com o seu futuro profissional, o jovem da elite branca brasileira não pensa mais o país nas universidades, não busca mais as soluções para os problemas nacionais, mas apenas para o seu problema pessoal de como se virar no futuro profissional. É claro que existem exceções, mas que, infelizmente, somente comprovam a regra.
Brasil de Fato: Outra crítica às cotas é de que ela é uma nova forma de segregação racial às avessas uma vez que reafirma a identidade negra como forma de conseguir "vantagens" em relação a brancos, mesmo que estes sejam mais pobres que os primeiros. Como o senhor enxerga essa questão?
Marcus Orione: Esta é uma afirmação, no mínimo, equivocada. Para ser segregada no nosso país, a raça branca, que se encontra em vantagem histórica de séculos, precisaria de uma força oposta de mais alguns séculos. No entanto, qualquer política de cotas, como é sabido por qualquer um, é transitória. Assim, no instante de equilíbrio das forças, observada a lógica do capitalismo, as cotas não seriam mais necessárias. Além disto, não há que se falar em instauração de uma divisão racial, hoje supostamente inexistente no Brasil. Primeiro, porque a divisão racial já existe, basta ver a guerra travada nos faróis entre as raças. Basta ver a cor dos que são dizimados nas periferias. E assim por diante. O ódio racial, de ambas as partes, já está instaurado, há muito, no país. As cotas irão, isto sim, acabar com a segregação negra, sem que isto importe em uma segregação oposta. Não se cria uma segregação acabando com a outra. Isto remonta a um raciocínio primário e completamente desprovido de qualquer cientificidade.
Brasil de Fato: Professor, os estudantes de escolas públicas, negros e indígenas podem aguardar boas novidades sobre a possível implementação das cotas nas Universidades paulistas?
Marcus Orione: Falarei especificamente da USP sobre a qual tenho mais dados. A USP tem dois programas de inclusão social, chamados INCLUSP e PASUSP. Ambos são voltados para os alunos egressos da escola pública. No entanto, ambos são, a meu ver, completamente insuficientes, em especial se analisarmos a questão da inclusão racial. Aliás, mesmo para os fins principais a que se destinam, que é a inclusão do aluno de escola pública, me parece que os dados não são tão animadores. Na sua última edição atingiram apenas o índice de 28% de inclusão deste segmento, sendo que a população negra correspondeu a 2,6%. A insuficiência é apontada mesmo em documentos oficiais, que são explícitos no sentido de que os alunos da Rede Pública que se inscreveram para o INCLUSP, por exemplo, diminuíram sensivelmente desde a concepção do programa. Veja-se, ainda, a baixa inclusão, especialmente em cursos de elevada concorrência. No caso do curso de Direito do Largo de São Francisco, conforme dados de março de 2012, a aprovação de candidatos inscritos no INCLUSP não chegou a 9% e, na Medicina, por exemplo, não chegou a totalizar 15%. Veja-se que, aqui, sequer estamos falando em número de aprovados na perspectiva racial, que, segundo fontes oficiosas, chega no curso de Direito do Largo de São Francisco, a 2%. Isso, aliás, é visível para qualquer professor, que, como eu, ministra aulas para classes do diurno e do noturno. Mas alguns poucos avanços, em especial do INCLUSP, devem ser aproveitados em caso de aprovação de um sistema de cotas. Por exemplo, a admissão de que não basta apenas o ingresso, sendo necessárias políticas para a permanência dos alunos negros na Universidade como, por exemplo, os programas de bolsas, que ajudam a evitar a evasão.
Da mesma forma, há dados interessantes que devem ser considerados no discurso da admissão de alunos de segmentos menos favorecidos da sociedade e que já estão demonstrados por ambos os programas. Assim é fato que não é possível falar em baixo rendimento de alunos provenientes destes segmentos em relação aos demais que cursam a Universidade. Este dado, e já existem conclusões em outras experiências no mesmo sentido, deve ser aproveitado para reforçar a política de cotas raciais. Estas questões são importantes para a nossa reflexão a respeito inclusive do que se entende por mérito nas universidades – que passará a ser qualificado pela ideia de diversidade, indispensável ao espírito universitário e que é potencializada no caso das cotas raciais, sociais e para pessoas com deficiência. Infelizmente, no entanto, e apesar destes dados, o Conselho Universitário, em recente reunião, ao invés de tratar o assunto de forma mais contundente, resolveu apenas promover uma série de debates a respeito do tema. Pessoalmente, e vendo a evolução da questão no país, acho que a USP está ficando para trás e isto custará, com o tempo, a perda de sua credibilidade enquanto instituição pública e de qualidade de seu ensino pois não dará o salto necessário para o enfrentamento das grandes questões nacionais.
Fonte: Brasil de Fato