Por Leon Karlos, em seu blog Método Dialético Aplicado
Não é possível pensar a história do Brasil ignorando o papel dos negros. Não havendo essa possibilidade, estamos impossibilitados também de pensar o presente negando a existência de um problema situado nessa questão do racismo, jamais resolvida no país. Essa é uma premissa básica para que possamos traçar análises, não importando se elas se voltam ao passado, ou à conjuntura em que vivemos, ou mesmo ao Brasil que pretendemos construir.
Tomando essa lógica como ponto de partida, entendemos, portanto, que não basta o silêncio a respeito de um fenômeno para que ele deixe de existir no inconsciente coletivo. Há de se convir, contudo, que esse silêncio reinante sobre o assunto no Brasil não impera por acaso; ele é manifestação prática de concepções teóricas formuladas no seio de nossa elite. Essas concepções, no entanto, não estão dissociadas do caráter de classe que as impregna. Diz Carvalho (2006) que
as teorias e as interpretações raciais no Brasil sempre foram elas mesmas racializadas, como consequência da distância e do isolamento mútuo que tem caracterizado as relações entre os intelectuais e acadêmicos brancos e os intelectuais e acadêmicos negros.
Carvalho analisava, neste caso específico, um elemento sintomático: o fato de que a Academia era um ambiente restritivo à presença dos negros. Não deliberadamente, é claro; a restrição, nesse caso, era/é velada. Silenciosa. Inconsciente, se pudermos falar assim (embora essa classificação não seja essencialmente justa, pois nega a parcela de culpa de seu portador).
Essa manifestação típica do racismo brasileiro – velada, naturalizada na forma de “brincadeiras” e afins – foi muito bem diagnosticada por Nogueira (1985), que a enquadrava como uma manifestação racial “de marca”, contrapondo, assim, a essência do preconceito brasileiro e a de outra manifestação relevante: a do racismo nos Estados Unidos, ao qual ele incubia como de “origem”.
Essas terminologias não são apenas palavras ao vento. Elas ajudam a compreender a naturalização que aqui se praticou de maneira severa, e nos possibilita inclusive ter uma ciência do quão agressiva foi essa velada política. O exemplo maior disso ocorre nas discussões que se fazem interminadas sobre o assunto, onde quase sempre há um lado que levanta o argumento de que não falar de racismo é a melhor maneira de superá-lo.
Em suma, portanto, e explicando a conceitualização que Nogueira faz sobre o tema:
Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável [...] Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem. (NOGUEIRA, 1985. Grifos do autor)
Evidentemente, as duas formas podem se manifestar lá, aqui, ou noutros lugares, mas um diagnóstico geral se aproxima do que bem coloca o Oracy Nogueira em sua obra. Fica perceptível assim uma face do preconceito brasileiro que não era exatamente visível. Ela era, no entanto, presente desde sempre. Schwarcz, por exemplo, ao estudar o receio da elite baiana com a mestiçagem (considerada uma “degenerescência”), afirma que “a nação foi antes pensada em termos raciais do que entendida a partir de critérios econômicos ou culturais” (SCHWARCZ, 1993).
Esses pontos, entre outros mais, fundamentam a negação à ideia de democracia racial no Brasil. Como se sentenciasse sobre o assunto, Florestan Fernandes, eminente estudioso das relações raciais no país, dirá que “a convicção de que as relações entre 'negros' e 'brancos' correspondem aos requisitos de uma democracia racial não passa de um mito” (FERNANDES, 1978. Grifo nosso).
Esses e outros estudos são basilares para compreender as raízes e o desenvolvimento tortuoso das relações raciais no Brasil, e igualmente para entender porque esse problema nunca foi solucionado. O debate, portanto, não pode se fechar agora. Mais do que nunca, ele deve se fazer presente. Quebrar o silêncio torturante a respeito desse assunto é combater os navios negreiros que jamais aportaram.
Referências
CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista da USP, São. Paulo, n. 68, p. 88-103, dez./jan./fev. 2005-2006.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3.ed. São Paulo: Ática, 1978.
NOIGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. In: Tanto preto quanto branco. São Paulo: T. A . Queiroz,1985.
SCHWARCZ, L.M. As Faculdades de Medicina ou Como Sanar um País Doente. In: O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. Lpp. 189-238, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.