27 de jan. de 2011

Desastres Urbanos: que lição tirar?

"Quando foi o último? Angra dos Reis? Morro do Bumba? Santa Catarina?" São com estas questões que o coordenador nacional do INCT: Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, inicia sua reflexão a respeito das causas desses desastres urbanos. O texto faz uma análise do padrão de gestão das cidades brasileiras, onde o "planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de operações por exceções."

Desastres Urbanos: que lição tirar?

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Professor Titular do Instituto de Pesquisa
Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ e
Coordenador do INCT Observatório das Metrópoles – CNPQ/FAPERJ

Quando foi o último? Angra dos Reis? Morro do Bumba? Santa Catarina? Já perdemos as referências, tantos e frequentes têm sido os incidentes climáticos assolando as nossas cidades. Estes mais recentes ocorridos nas cidades serranas do Rio de Janeiro impactam pela extensão e gravidade demonstradas através das imagens e dos dados. Também porque desfazem definitivamente a visão preconceituosa de que são apenas os pobres e as moradias irregulares atingidas por estes fenômenos climáticos. Até artista global foi vítima, condomínios de alta classe média desapareceram sob um mar de lama, pedras e detritos. Parece que ninguém está protegido dos efeitos dos fenômenos climáticos, apresentados como atípicos. Apresentados, pois os números mostram que mesmo nesta região já tivemos chuvas em intensidade até superior. Onde está o problema, então?

Embora ainda seja hora de encontrar e enterrar os mortos, viver o luto pelas perdas de vidas, amparar os sobreviventes em sua dor física, psicológica e moral, é importante abrir espaço para a reflexão a respeito das causas destes desastres urbanos. Ao serem convocadas para fornecer explicações pela imprensa, as autoridades públicas explicam tais tragédias, invariavelmente, como as consequências de eventos climáticos incomuns, fora dos padrões previstos e da suposta irracionalidade do comportamento da população que aceita morar em áreas sujeitas a evidentes riscos ambientais e não cuida adequadamente dos seus lixos. Diante das ameaças de desvalorização do seu capital eleitoral, essas autoridades desencadeiam verdadeiras operações emergenciais. Engenheiros, bombeiros, policiais e outros corpos técnicos de emergência são mobilizados de maneira excepcional pelas autoridades públicas para diminuir os estragos e, de alguma forma, acalmar o natural sentimento de desamparo da população.

O governo federal desta vez saiu na frente. Federalizou a questão, chamando para si a responsabilidade de tomar a iniciativa quanto a ações preventivas. Na segunda-feira mesmo, dia 17, a presidência da república anunciou a criação do Sistema Nacional de Prevenção e Alerta de Desastres Naturais. Teria sido uma decisão tomada em alto nível da hierarquia dos poderes da nação, envolvendo a presidenta Dilma Rousseff e os ministros da Justiça, Defesa, Ciência e Tecnologia, Integração Nacional e Saúde. Bravo! A previsão é a de que o sistema esteja em funcionamento integral em quatro anos. No entanto, dados das áreas de risco mais críticas já devem estar disponíveis no próximo verão.

Será que é suficiente esta ação? A intensidade e a extensão dos desastres não ocorrem por ausência de informações mais precisas no tempo e no espaço, muito embora elas sejam imprescindíveis para mitigar os efeitos de fenômenos climáticos como os que vêm ocorrendo. Na edição de hoje, dia 19 de janeiro, o jornalista Elio Gaspari reproduz trechos de documentos publicados pela repórter Priscila de Lima em site Nova Imprensa de Nova Friburgo, onde veiculavam informações antecipatórias desta catástrofe.

A raiz do problema está na gravidade, extensão e profundidade da precariedade das nossas cidades. Não é novidade para ninguém, com efeito, que o espaço urbano foi e continua a ser apropriado por formas totalmente à margem da regulação pública, dos planos diretores, das leis de uso e ocupação do solo urbano, dos códigos de construção e de posturas. Um verdadeiro laissez faire impera em nossas cidades, produzindo não apenas territórios da pobreza, mas também habitados por segmentos sociais de alta renda. Para quem tiver ainda dúvida: na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, 69,7% das áreas ocupadas acima dos 100 metros de altitude (cota 100) no município - que totalizam 11,7 milhões de metros quadrados - estão nas mãos das classes média e alta, segundo dados do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão de planejamento e informação da Prefeitura. E apenas 30% deste vasto território inapropriado para fins residenciais são ocupados pelas favelas. Em compensação, 73,5% dos moradores de favela habitam áreas acima da cota 100. Ou seja, as nossas cidades são fortemente desiguais até na distribuição social dos riscos decorrentes da precariedade urbana.

A explicação para a suposta fatalidade das catástrofes que assolam as nossas improvisadas cidades é o padrão catastrófico de gestão urbana que reproduz a precariedade urbana. A reconhecida fragilidade institucional das nossas Prefeituras resulta da incompletude do processo de construção da cidadania e, como correlato, a inexistência nas mesmas de mecanismos e procedimentos de gestão urbana fundada no universalismo de procedimentos. Onde a cidadania se afirmou e universalizou o padrão igualitário nos procedimentos de provisão de serviços e de regulação das práticas de uso e ocupação do solo urbano, tornou-se necessário a constituição de uma burocracia técnica para exercer o importante papel de racionalização da política. A sua existência implica na institucionalização do campo da ação política e a introdução do interesse geral encarnado por esta burocracia como mediador do jogo dos interesses particulares. Ou seja, a existência dessa burocracia é fundamental para a adoção do universalismo de procedimentos que permite que administração funcione sob baixa influência do jogo político imediato e particularista. Como já mostraram vários analistas das relações entre Estado e Sociedade no Brasil, a constituição de burocracias com estas características ocorreu apenas nas áreas de interesses de frações das classes capitalistas modernizantes como forma de proteger os pedaços do Estado que asseguram as condições gerais da acumulação de capital. Fenômeno que o cientista político Edson Nunes chamou de insulamento burocrático. São exemplos, ainda hoje, de ilhas de racionalidade técnica, o BNDES, o Banco do Brasil, a Petrobrás, o Ministério da Fazenda, o Ministério do Planejamento. Nos outros setores de atuação do Estado, via de regra aqueles cuja função é atender às necessidades de reprodução social, prevalecem outras gramáticas cujo denominador comum é a predominância dos interesses particularistas e imediatos no funcionamento dos aparelhos públicos.

Na organização atual do chamado pacto federativo, couberam às Prefeituras estas últimas funções. Para tanto, desde o início dos anos 1980, vem sendo descentralizada para os municípios parcelas significativas dos recursos fiscais manipulados pelo Estado brasileiro. Na ausência de vigorosas instituições políticas capazes de constituírem a cidadania, essa descentralização vem alimentando 4 lógicas políticas particularistas que coexistem na organização e no funcionamento da administração urbana, bloqueando, como consequência, a adoção dos necessários instrumentos de planejamento e gestão pública de correntes da afirmação da lógica do universalismo de procedimentos. Estas lógicas esquartejam a máquina pública em vários centros de decisão que funcionam segundo os interesses que comandam cada uma delas. São elas: a) o clientelismo urbano que trouxe para as modernas cidades brasileiras o padrão rural de privatização do poder local, tão bem transcrito por Vitor Nunes Leal na expressão coronelismo, enxada e voto, mas que nas condições urbanas transformou-se em assistencialismo, carência e voto. Trata-se da lógica que está na base da representação política no Poder Legislativo Municipal, mas que precisa controlar parte da máquina administrativa para fazer a mediação do acesso pela população ao poder público. O clientelismo urbano é alimentado por práticas perversas de proteção de uma série de ilegalidades urbanas que atendem a interesses dos circuitos da economia subterrânea das nossas cidades (comércio ambulante, vans, etc.) e a necessidades de acessibilidade da população às condições urbanas de vida, dando nascimento às nossas favelas e às entidades filantrópicas que, travestidas de ONgs, usam recursos públicos para prestar privada e seletivamente serviços coletivos que deveriam ser providos pela Prefeitura. Atualmente, esta lógica vem se reconfigurando pela presença nas câmaras de vereadores de representantes dos interesses da criminalidade, como é caso do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro. b) o patrimonialismo urbano fundado na coalisão dos históricos interesses presentes nos circuitos da acumulação urbana, representados pelas empreiteiras de obras públicas, concessionárias dos serviços públicos, entre elas o poderoso setor de transportes coletivos, e os do mercado imobiliário. Esta lógica de gestão das cidades constitui-se historicamente na etapa de transição da economia agroexportadora para a economia industrial, pela reconfiguração do capital mercantil em capital urbano, mas que mantém os traços fundamentais desta forma de acumulação, ou seja, a manipulação dos preços e a corrupção, obtidas pelo controle privatista de parte da máquina pública. Nos anos 1950-1970, este circuito se afirma e seus atores passam a constituir importante parcela do poder urbano em razão da explosão demográfica e econômica das nossas cidades impulsionadas pela expansão do Estado Desenvolvimentista, favorecendo a realização de vultosas obras viárias, pontes, túneis, etc., custosas, mas de finalidades duvidosas. Por outro lado, a criação do Sistema Financeiro da Habitação comandado pelo BNH consolidou o setor imobiliário, fez expandir as empresas de construção civil e sua presença no comando da administração das cidades. c) o empreendendorismo urbano é uma lógica emergente impulsionada pelo surgimento de um complexo circuito internacional de acumulação organizado em torno da transformação das cidades em “máquinas de entretenimento”, para usar a expressão cunhada pelo sociólogo americano Terry Clark. Integra este circuito uma miríade de interesses, protagonizados pelas empresas de consultoria em projetos, pesquisas, arquitetura, de produção e consumo dos serviços turísticos, empresas bancárias e financeiras especializadas no crédito imobiliário, empresas de promoção de eventos, entre outras. Tais interesses têm como correspondência local as novas elites locais portadoras das ideologias liberais que buscam na aliança com aqueles interesses recursos e fundamentos de legitimidade do projeto de competição urbana. As novas elites buscam a representação política através do uso das técnicas do marketing urbano, traduzido em obras exemplares da “nova cidade”, o que é facilitado pela fragilidade dos partidos políticos. A política urbana passa a centralizar-se na atração de médios e mega-ventos e na realização de investimentos de renovação de áreas urbanas degradadas, prioridades que permitem legitimar tais elites e construir as alianças com os interesses do complexo internacional de entretenimento. Na maioria dos casos, esta orientação se materializa na constituição de bolsões de gerência técnica, diretamente vinculados aos chefes do executivo e compostos por pessoas recrutadas fora do setor público. Portanto, a lógica do empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica no abandono e mesmo desvalorização da organização burocrática. Os salários dos funcionários clássicos são aviltados, suas carreiras perdem prestígios, não são capacitados, os cadastros são abandonados e mesmo a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada. d) o corporativismo urbano traduzido na presença dos segmentos organizados da sociedade civil nas arenas de participação abertas pela Constituição de 1988, cuja promessa era a constituição de um padrão republicano de gestão da cidade que, se implantado, criaria a condições para o surgimento de uma gestão urbana fundada no universalismo de procedimento. Os municípios onde a correlação de forças levou ao comando das Prefeituras coalisões de forças comprometidas com o projeto de constituição de uma verdadeira esfera pública local, vêm sofrendo reveses decorrentes, de um lado, em razão do baixo índice de associativismo vigente na sociedade – apenas 27% da população adulta integra as formas de organização cívica como sindicato, associações profissionais, partidos, entidades de bairro, etc. – e , de outro lado, pela diminuição do ímpeto dos movimentos sociais nas cidades. Estes dois fatos vêm bloqueando a constituição de uma aliança entre o escasso mundo civicamente organizado e o vasto segmento da população urbana que se mobiliza politicamente apenas de maneira pontual e temporária. O resultado é que as experiências participativas resultam no atendimento dos interesses destes segmentos organizados, não forçando a adoção de um universalismo de procedimentos, pressuposto da constituição de uma burocracia planejadora.

Se é verdade, portando, que estas catástrofes são geradas por incidentes climáticos fora do comum, os seus efeitos resultam de um padrão muito comum de gestão das nossas cidades, onde o planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de operações por exceções, com os órgãos da administração pública fragilizados. Neste quadro de gestão urbana, os previsíveis problemas causados pelos igualmente previsíveis eventos climáticos somente podem ser respondidos por ações emergenciais, o que contribui decisivamente para a reprodução da precariedade das nossas improvisadas cidades. Estamos diante dos resultados de uma catastrófica gestão urbana.

Fonte: Observatório das Metropoles.